Ontem recebi uma notícia inusitada: o Esporte Clube Juventude, time de futebol que foi pauta da minha reportagem em quadrinhos, acaba de ser rebaixado para a Série D do Campeonato Brasileiro. Em 2007, o time estava na Série A.
Essa notícia é o mote para a segunda parte do meu diário de bordo, com reflexões práticas sobre o processo de fazer a reportagem em quadrinhos "Juventude: tempo de crescer".
(Se você não leu a primeira parte, cutuque aqui.)
A apuração
De maneira geral, posso dizer que a apuração de uma reportagem em quadrinhos tem pouca coisa de diferente da apuração de reportagens impressas convencionais. Pelo menos no que toca à experiência que tive com a minha primeira reportagem em quadrinhos.
Cheguei na cidade de Caxias do Sul, na serra gaúcha, no dia 1º de junho, uma terça-feira. Antes de ir, eu já havia pesquisado em linhas gerais a história do clube, como é de praxe - melhor já ir sabendo algumas coisas, de modo a usar o tempo de apuração para aprender outras. Ao chegar em Caxias, porém, tratei de já ir ao Estádio Alfredo Jaconi. No primeiro dia, meu objetivo foi unicamente me situar. Fiz uma visita guiada pela sala de troféus e pelo estádio. Nisso contei com a prestatividade dos funcionários do clube. O assessor de imprensa também me passou os contatos de algumas pessoas com quem eu pretendia conversar: jogadores, dirigentes, funcionários, torcedores, historiadores etc.
Para mim, o primeiro dia de apuração normalmente é isso mesmo: cruzamento de informações, reconhecimento do cenário e da cronologia da pauta, percepção de quem são os principais personagens e quais são os principais eventos da história que eu vou contar, e por aí vai. Também aí começa a edição: posso dizer que nesse primeiro dia já me ocorrem ideias sobre como editar a reportagem, embora eu esteja sempre pronto a descartá-las no dia seguinte conforme o andamento da apuração.
Na quarta-feira, passei mais algumas horas no estádio, apurando e já fazendo algumas entrevistas. Voltei lá na quinta-feira, e fiz outras tantas. E na sexta-feira de manhã, enquanto esperava a chegada da desenhista Ana Luiza Goulart Koehler, colhi os últimos depoimentos.
Essa é uma questão importante, a presença da desenhista. Desde o início, eu levantei a bandeira de que o desenhista é tão importante no momento da apuração de uma reportagem em quadrinhos quanto o jornalista. Afinal, eu busco uma narrativa original em quadrinhos, não uma adaptação de uma reportagem feita em outro formato. A diferença entre esses dois pólos - uma reportagem em quadrinhos e uma reportagem ilustrada - é sutil, mas existe. E manifesta-se principalmente durante a apuração.
Afinal, no jornalismo em quadrinhos a imagem traz tantas informações quanto o texto. Informações visuais e ambientação são, inclusive, muitas vezes liberados do texto para ir para o desenho. Sobre isso, vou falar melhor em outra parte deste diário de bordo. O importante é que, tendo em vistas essas minhas convicções, o desenhista precisava estar lá comigo para acompanhar os detalhes visuais da apuração, de modo a fazer desenhos mais fidedignos.
Em função de compromissos, a Ana só pôde me encontrar lá na véspera do meu retorno a Porto Alegre. Durante a semana, eu procurei tirar o maior número de fotos possíveis para embasar o trabalho dela, e nisso senti bastante dificuldade. Eu preferiria estar concentrado apenas na apuração, e a necessidade de fazer registros visuais me desconcentrava bastante - imagino o drama vivido pelos repórteres "abelhinhas", jornalistas de televisão que fazem toda a reportagem sozinhos, inclusive montando a câmera num tripé. Enfim, resumindo: eu preferiria que o desenhista estivesse lá comigo cuidando dessas questões. Como não foi possível, tivemos que adaptar.
Na sexta-feira, 4 de junho, a Ana foi ao meu encontro. Como eu sabia que ela viria, reservei a tarde para revisitar com ela alguns cenários importantes da pauta. Apesar de estar chovendo bastante, a Ana concordou que a presença dela lá, vendo com os próprios olhos o que eu vira nos últimos dias, dava a ela mais informações para desenhar. Porque uma foto nem sempre dá a sensação de profundidade e dimensão do espaço que o nosso olho percebe.
Ainda na sexta-feira, durante o almoço, expus para a Ana o que eu tinha apurado até ali - a história do Juventude e a narrativa do seu fracasso nos últimos anos. Juntos fizemos uma pré-edição da reportagem, uma espécie de decupagem dos assuntos apurados já pensando na sua distribuição nas páginas. Vou falar melhor sobre isso mais adiante, em outro tópico deste diário de bordo.
Antes de concluir, outro aspecto importante sobre a apuração - aspecto, no entanto, não exclusivo de reportagens em quadrinhos. Refiro-me à questão da tese que o jornalista leva para a apuração. Isso geralmente é apontado como algo ruim, quando diz respeito a uma tentativa do jornalista de manipular a realidade apurada para que o resultado confirme sua tese inicial. Eu confesso: eu tenho minhas teses quando vou para a rua. No entanto, a apuração é para mim um processo de questionamento dessas teses, onde pode haver modificações, ou confirmações, ou mesmo formulação de outras teses.
No caso dessa reportagem em quadrinhos, por exemplo, eu pensava que encontraria no clube um clima de abatimento, haja vista que o clube havia sido rebaixado para a Série C em 2009, depois de dois anos disputando a série B e, antes disso, treze anos seguidos disputando a Série A. Essa era a minha tese: o clima deve estar ruim no clube. No entanto, chegando lá, encontrei justamente o contrário: estavam todos muito motivados, esperançosos com a melhora do time. Se o Juventude não voltasse para a Série B em 2011, voltaria no ano seguinte. A ambição - mirabolante para alguns, razoável para outros - de comemorar o centenário do clube, em 2013, na Série A, parecia ser um fator motivador. Mas havia outras coisas e, de fato, no processo de apuração fui entendendo o porquê disso. Há explicações para os dois rebaixamentos do clube, depoimentos de torcedores e funcionários falando dos erros cometidos pelas gestões anteriores. Como em 2010 retornou à direção do clube a gestão responsável pelos maiores títulos do Juventude, era de se esperar que os erros fossem consertados. Daí a esperança.
O que encontrei lá, portanto, não foi um clima de abatimento, mas ao contrário: bastante otimismo e motivação. E eu estaria sendo injusto se, na reportagem, não relatasse isso.
Eu gosto bastante das reportagens que me fazem reformular minhas teses. Assim, no plural, porque nunca é uma única tese, e geralmente quando estou apurando estou também em constante avaliação das informações e de suas implicações, o que gera novas teses. Mas muitas vezes há uma tese geral, e essa tese geral é preponderante justamente por ser óbvia, previsível, resultado de operações lógicas. E quando essa tese é desconfirmada, desconfirma-se também os mecanismos da previsão. Nesses casos, sempre fico com a sensação de que a pauta cresce: afinal, por que não ocorreu o óbvio? O fato de o óbvio não ter ocorrido é a nova pauta, geralmente inusitada.
De modo que acho importante o jornalista ter suas teses, desde que durante todo o processo continue sendo apenas isso - uma tese, uma hipótese, algo a ser confirmado ou, conforme o caso, descartado. Considero negativa a tese que se impõe, ignorando a realidade e quase dispensando a apuração. Mas se o jornalista encara a tese como um processo em movimento, periga até fazer bem para a pauta.
(Continua.)
***
Ps.: a Ana Koehler escreveu seu próprio relato sobre o processo de fazer essa reportagem em quadrinhos. É muito interessante ter esse outro lado, a visão do desenhista, inclusive abordando a pesquisa realizada para se fazer os desenhos, que eu não pretendia abordar aqui. Ainda que a Ana já tenha avançado no post sobre outros aspectos da reportagem - aspectos que pretendo tratar mais adiante - recomendo a leitura. Cutuque aqui.
segunda-feira, setembro 20, 2010
Diário de bordo, parte 2: a apuração
Postado por
Augusto Paim
às
4:41 AM
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Um comentário:
O desenhista nesse processo é tão importante quanto o fotógrafo para o impresso ou melhor, o cinegrafista para a TV.
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