A premiação da edição mais recente do Troféu HQ Mix aconteceu semana passada, em São Paulo. Um dos laureados foi o jornalista Rogério de Campos, na categoria Melhor Articulista. Ele se saiu vencedor com a nota que escreveu para a edição brasileira do livro "Che".
Campos e a editora Conrad gentilmente cederam o texto para publicação aqui no cabruuum. Ele segue abaixo, em versão integral. Nos próximos dias, publico a entrevista que fiz com o autor.
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Nota da Edição Brasileira
Rogério de Campos
Demos um sumiço nele, por ter feito a mais bela história do Che que já foi escrita”, confessa o militar argentino para o jornalista e escritor italiano Alberto Ongaro, que tenta saber o que aconteceu com Héctor Germán Oesterheld. A frase parece um pouco irreal, mas temos que compreender que foi dita no ano de 1979. E a Argentina daquele momento parece irreal, como um pesadelo.
O período é cheio de outras frases tão sinistras que parecem igualmente irreais. Como esta, famosa, do general Ibérico Saint Jean: “Primeiro mata-remos os subversivos, depois seus colaboradores e então os que continuam indiferentes, até, finalmente, matarmos os tímidos”. O general disse isso em 1977, quando era governador de Buenos Aires, nomeado pela junta militar que governava o país. Foi durante a gestão de Ibérico Saint Jean que aconteceu o episódio que ficou conhecido como Noche de los Lápices: o seqüestro, pela polícia da capital, de dez adolescentes – quatro meninas e seis meninos. Só quatro deles sobreviveram às brutais sessões de tortura. Que alguns jovens tenham decidido também “pegar em armas” contra essa situação é algo lamentável e que demonstra falta de sabedoria, mas é assim uma decisão tão inexplicável?
Foi também em 1977 que Oesterheld tornou-se um “desaparecido”. Ele e suas quatro filhas – Marina (18 anos), Beatriz (19), Diana (23) e Estela (24) – estão entre os 30 mil argentinos que, segundo o cínico general ditador Jorge Videla, “não estão vivos nem mortos; estão desaparecidos”.
Videla e seus pares ditadores latino-americanos inspiraram-se nas aulas da famosa Escola das Américas a respeito da eficiência do Nacht und Nebel Erlass (Decreto da Noite e Névoa), de Hitler, que estipulava detenções secretas de acusados de fazer parte da resistência antinazista. Essa prática permite o “desaparecimento dos suspeitos sem deixar rastro, e sem que circule qualquer informação a respeito de seu paradeiro ou destino”. As pessoas desaparecem na névoa e na noite. O Estado prende, mas não assume que prendeu, assim as famílias não têm como entrar com ações legais de defesa. Mesmo “a entrega do corpo para seu enterro no lugar de origem não é aconselhável”, recomendam os mestres nazistas, “porque o momento do enterro poderá ser usado para manifestações”. O objetivo era fazer com que “toda resistência seja castigada, não dentro de um processo legal, mas através da disseminação de tal terror […] até que toda a disposição de resistência entre o povo seja eliminada”.
Os generais falam muito de defesa da pátria, mas da pátria mesmo pa-recem gostar apenas das bandeiras, dos hinos, dos uniformes e das linhas das fronteiras. O povo, em especial os jovens, artistas, escritores, pensadores, professores e estudantes, é tratado como um mal necessário, às vezes desne-cessário. De outro modo, pessoas como Oesterheld e Alberto Breccia seriam desde sempre motivo de grande orgulho pátrio. Afinal, Breccia não é apenas o maior desenhista da história dos quadrinhos latino-americanos: é presença obrigatória em qualquer lista sensata dos principais nomes da história da HQ mundial. “A história dos quadrinhos é dividida em duas épocas: aquela que vem antes de Alberto Breccia e aquela que vem depois de Alberto Breccia”, diz Frank Miller, que tenta até hoje aprender o domínio de branco e preto das páginas do mestre argentino.
Oesterheld também é muito mais que o maior roteirista da história da HQ argentina ou latino-americana. É o primeiro grande roteirista dos qua-drinhos mundiais, o primeiro a perceber as possibilidades dos quadrinhos como uma espécie de nova literatura. Não é à toa que, em 2000, quando o jornal Clarín lançou sua coleção La Biblioteca Argentina, com os grandes clássicos da literatura do país, incluiu El Eternauta (uma HQ escrita por Oesterheld e ilustrada por Francisco Solano López, descendente do caudilho paraguaio), ao lado de Martín Fierro e de livros de Borges, Sábato e Cortázar. E isso não soa como uma intrusão indevida. El Eternauta é uma daquelas obras que formaram a imaginação de várias gerações de argentinos. Borges, aliás, era amigo de Oesterheld, que um dia garantiu: “Ele também gostaria de escrever roteiros de quadrinhos”.
Juntos, Oesterheld e Breccia lideraram um movimento que no fim dos anos 50 transformou a Argentina no mais interessante centro de produção de quadrinhos do Ocidente, cujo impacto ultrapassou as fronteiras do país. Foi depois de um “estágio” de alguns anos trabalhando com Oesterheld na Argentina que Pratt partiu para a Europa e criou a série Corto Maltese, que revolucionou o mundo dos quadrinhos europeus e tornou-se uma das principais referências para o surgimento do quadrinho autoral no Velho Continente. Pratt dizia que Oesterheld foi sua maior influência na técnica narrativa, e que criara o herói Ernie Pike à imagem do roteirista.
Os anos 60 são conhecidos como o momento em que a HQ argentina entra em crise e inicia sua decadência. Mas que bela decadência! É, por exemplo, quando surge a Mafalda, de Quino, e Mort Cinder, outra das criações da dupla Oesterheld e Breccia, listada freqüentemente como a melhor HQ latino-americana de todos os tempos. Por isso, o escritor e roteirista Carlos Trillo descreve essa época como “um luxuoso funeral”.E em janeiro de 1968 surge este La Vida del Che, apenas três meses depois da morte do guerrilheiro. É algo feito no calor do momento. Os desenhos são de Alberto Breccia e seu filho Enrique, que tem apenas 22 anos e faz uma estréia espetacular.
Em entrevista a Jan Baetens, realizada em 1992 em Bruxelas, Alberto afirma: “Che é, sem dúvida nenhuma, o mais bem construído e o mais coletivo dos meus álbuns. Junto com o roteirista Héctor Oesterheld e com meu filho Enrique, que realizava seu primeiro trabalho, queríamos contar a história de uma figura que, pelo menos na época, talvez hoje nem seja mais o caso, era quem melhor representava a América do Sul. Em Che, nos esforçamos para resumir da maneira mais clara possível a vida e o significado de Guevara, a fim de transmiti-los às futuras gerações. Assim que foi lançado, em 1968, o livro fez um enorme sucesso. No dia do lançamento, todos os muros de Buenos Aires estavam cobertos de cartazes”.
Em pouco tempo, o álbum atingiu a marca de dezenas de milhares de exemplares vendidos. Para alguns historiadores, essa HQ teve um papel impor-tantíssimo na consolidação da imagem de Che como um herói na Argentina. O jornal La Nación chegou a publicar um editorial advertindo sobre o perigo que tal obra significava para a paz da nação.
Seu efeito é tão poderoso que os autores recebem um telefonema da embaixada norte-americana: querem encomendar uma HQ do mesmo tipo sobre Kennedy. No way, gringo!
Mas o sucesso da obra foi também a desgraça de Oesterheld. A Argentina já vivia sob uma ditadura militar naquele momento, comandada pelo general Onganía. O editor Jorge Alvarez até tentara convencer seus autores a publicar a obra anonimamente, mas Oesterheld resistiu: “A história de um persona-gem como Che não merece ser feita às escondidas”. E, além do mais, como disfarçar o traço de Breccia? Então começam as perseguições. A editora é invadida, o estoque e os originais são confiscados e destruídos.
Depois de Onganía, entra em cena outro general ditador: Marcelo Levings-ton. E, na seqüência, outro: Alejandro Lanusse. Em 1973, a esperança ressurge no país, com a volta de Perón, depois de quase vinte anos de exílio. Oesterheld, outrora crítico do caudilho, envolve-se mais e mais com a ala de extrema-esquerda do peronismo, junto com as filhas. Mas as esperanças se frustram: Perón se cerca de direitistas e, ao morrer, um ano depois, deixa a presidência nas mãos da viúva, Isabelita Perón, que leva o governo ainda mais para a direita, a ponto de criar a força parapolicial Alianza Anticomunista Argentina, encarregada de seqüestrar, torturar e assassinar líderes da esquerda do país.
A circulação do álbum Che é proibida. As pessoas destroem os exemplares que têm em casa, por medo da repressão. A família Breccia recebe diversas ameaças. Em março de 1976, a situação piora ainda mais: Isabelita cai e é instaurada a nova ditadura militar, decidida a limpar a Argentina de qualquer coisa que tenha alguma ligação com a esquerda. O governo norte-americano, através de seu secretário Henry Kissinger, dá seu apoio e um conselho: “ajam rápido”. O que acontece depois disso é um massacre.
A primeira a “desaparecer” foi Beatriz Marta Oesterheld, em junho de 1976. Diana Irene Oesterheld Araldi desaparece em julho do mesmo ano. Estava grávida de seis meses. Seu marido, Raul Carlos Araldi, também desaparece. Oesterheld é seqüestrado pela repressão em 27 de abril de 1977. Em novembro, Marina Oesterheld também desaparece, ao lado do marido, Oscar Alberto Seindlis. Ela estava grávida de oito meses. Por fim, em dezembro, desaparece Estela Inés Oesterheld, a última filha, junto com seu marido, Raúl Oscar Mortola.Do destino de Oesterheld na prisão restam os flashes de memória de outros prisioneiros. Alguém lembra de seu desespero quando algum sádico faz chegar a ele fotos das quatro filhas, torturadas e mortas.
No dia 14 de dezembro de 1977, avisam a Oesterheld que ele tem uma “visita especial”. Um menino de três anos, seu neto Martín, filho de Estela, que acabara de ser morta. Sabe-se lá por qual louca razão, alguém resolveu reunir neto e avô na prisão. Hoje, Martín lembra-se apenas de ficar horas e horas com o avô, naquele “corredor horrível, com paredes pintadas de azul látex brilhante”. De alguma maneira, Oesterheld conseguiu fazer com que o neto fosse encaminhado para os bisavós maternos.
A outra coisa que dizem é que, mesmo na prisão, Oesterheld continuava a escrever. Histórias que nunca conheceremos. Presume-se que tenha sido assassinado em 1978. Martín e Elsa, viúva de Héctor, ficaram sendo assim os únicos sobreviventes da família. Os filhos de Marina e Diana fazem parte da lista de desaparecidos. Apesar das ligações de Oesterheld e de suas filhas com a esquerda peronista, Elsa acredita que Héctor já estava marcado desde 1968, ano da publicação de La Vida del Che.
A brutalidade inominável com que a família Oesterheld foi quase exter-minada faz algumas pessoas aventarem que haveria na fúria militar um elemento a mais: o anti-semitismo. Não teria, certa vez, aparecido um oficial na casa de Elsa à caça de “Héctor, o judeu”? Hinos nazistas eram ouvidos durante sessões de tortura. E algumas salas de interrogatório tinham o retrato de Hitler na parede. Quem sabe aonde pode chegar a estupidez militarista?
Mas a história de Oesterheld não é, infelizmente, uma exceção no registro de horrores praticados pela ditadura militar argentina. Uma idéia insana de purificação do país moveu os detentores do poder a tal estado de espírito que não bastava proibir livros e fechar revistas. Era preciso matar os opositores, e mais: eliminar o ambiente que os havia gerado, incluindo aí parentes, amigos, professores e alunos. “Da mesma forma que destruímos com o fogo a documentação perniciosa que afeta o intelecto e nosso modo de vida cristão”, disse o general Luciano Menéndez, “serão destruídos os inimigos da alma argentina.”
E o general Menéndez fez sua parte: matou à vontade, além de organizar, em 26 de abril de 1976, a maior fogueira de livros já vista no país. No entanto, não foi o bastante. Ele acabou derrotado. A Argentina de Oesterheld sobreviveu.
Alberto Breccia sobreviveu para se vingar como só os grandes artistas sabem: com uma maravilhosa HQ, Perramus, na qual ele e o escritor Juan Sasturain fazem seu balanço da ditadura militar. Além de Enrique, suas outras filhas, Patricia e Cristina, também se tornaram quadrinistas. Alberto Breccia morreu em 10 de novembro de 1993, já reconhecido como um herói da cultura argentina. Ainda que reclamasse que os “bons tempos” da HQ de seu país já haviam terminado, pôde ver o surgimento de revistas como a Fierro (considerada freqüentemente a melhor revista de quadrinhos do Ocidente) e de novos quadrinistas como Muñoz, Sampayo, Fontanarrosa, Carlos Nine, Carlos Trillo, Ricardo Barreiro, Eduardo Risso e tantos outros que continuam a fazer da HQ argentina uma das mais fascinantes do mundo.
Até onde sabemos, esta é a primeira vez que uma HQ escrita por Oesterheld é publicada no Brasil. Por isso, esperamos que esta edição de Che sirva para ajudar a reparar a injustiça que tem sido cometida não contra Oesterheld e os Breccia, mas contra os leitores brasileiros, mantidos no desconhecimento deste tesouro que são os quadrinhos argentinos.
terça-feira, agosto 25, 2009
Melhor artigo do melhor articulista
Postado por
Augusto Paim
às
6:50 PM
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2 comentários:
Caramba, não conhecia o tamanho da importancia da HQ argentina!,
baita dica Augusto!
Hey, Augusto!
Depois d mt tempo sem dar uma olhadela do teu blog, resolvi ver o que andava rolando por aqui!
Sinceramente não fazia idéia dessa história, sabia de inúmeras atrocidades da época da ditadura, e a repressão argentina foi mt mais cruel que a nossa. A história é surpreendente pq mostra o poder que pode ter um HQ "bem feita", rendeu uma encomenda dos yankees e a tentativa de dizimar uma família. Sem dúvida foi mt coragem dos autores em assinar a revista, embora as consequencias tenham sido trágicas, o mundo foi presenteado com uma bela obra d arte! E ñ li, até minutos atrás ne sabia da existência mas tenho certeza que é um trabalho d valor inestimável, ñ só pelo conteúdo, mas pelas vidas perdidas.
é isso, parabéns pelo blog, sempre q venho aki acabo descobrindo algo novo e interessante!
bjos e t+
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