Antes de opinar sobre o assunto, eu procurei ter acesso à fala original de Dimenstein, pois sempre há distorções. Demorei a encontrar, mas finalmente achei. O post que ele escreveu para a Folha Online é este aqui:
"Mulher pelada é cultura?
Comentei aqui por diversas vezes que considero o vale-cultura, capaz de envolver até R$ 7 bilhões, um previsível desperdício --o dinheiro seria mais bem usado se focado nos estudantes das escolas públicas. Desde ontem, meu receio aumentou ainda mais, pela possibilidade de que, com esse benefício, mulher pelada também seja cultura. Ou gibi.
Foi aprovada uma emenda no Congresso permitindo que o vale-cultura seja usado para comprar jornais, revistas e gibis. Senadores argumentaram que, com isso, revistas como a 'Playboy' seriam beneficiadas, mas a emenda foi aprovada assim mesmo.
Nada contra a 'Playboy', mas mulher pelada não é cultura --muito menos com dinheiro público."
O post pode ser lido no original neste link.
Pois bem. Literalmente, Dimenstein não disse que histórias em quadrinhos não são cultura. Embora isso possa ser lido nas entrelinhas, claro. Mas o que ele disse de fato é que revistas como "Playboy" não são cultura. E que "gibis" talvez também não fossem.
Entendo a reclamação apaixonada de todos aqueles que fazem ou lêem quadrinhos. É inclusive legítima. Não acho, porém, que a fala de Dimenstein deva ser questionada em função do que ele (supostamente) falou sobre quadrinhos. O ponto é justamente outro: a questão da regulação do uso do vale-cultura. E é sobre isso que deixo alguns pensamentos:
1) em primeiro lugar, dizer que tal coisa é ou não cultura é um pensamento elitista e, desse ponto de vista, dominador. O mesmo é válido para essa vontade de quererem que o governo estipule em que tipo de publicações ou espetáculos o vale poderia ser usado. Se eu fosse fazer uso do vale-cultura, não gostaria nem um pouco que outra pessoa escolhesse, em meu lugar, ao que eu devo ou não ter acesso. Ao que eu devo ou não devo gostar. Até porque, gosto é algo que muda com o tempo, e precisaria haver um mecanismo que acompanhasse essa mudança individual. É, portanto, algo impossível de se pôr em prática.
2) entender que "gibi" ou "revista de mulher pelada" não são um produto cultural legítimo é questionar toda a validade de uma cultura que é popular e expontânea. Pessoas cultas não podem ler gibis? Nunca leram? Nunca viram fotos de mulheres peladas? Tem também aquela história - que, apesar de positiva, também é uma visão erudita do fenômeno - de que muitas pessoas iniciam a leitura por meio do gibi e depois vão "qualificando" o seu gosto literário. Isso já é um argumento a favor da auto-regulação do vale-cultura. Mas sou mais do pensamento do antropólogo Felipe Lindoso, que prega que as bibliotecas devem ter best-sellers e todo tipo de livro que o leitor queira ler. Só assim se faz uma real disseminação e democratização do acesso aos bens culturais. Sem falar que a dita cultura erudita segue disponível mesmo para quem usufrui especialmente da cultura dita popular. Vai caber então ao usuário do vale-cultura decidir no que ele deve usar. E essa decisão pode ir mudando com o tempo, conforme os bens culturais que ele tiver acesso. Mas primeiro ele precisa ter acesso a esses bens...
3) na fala de Dimenstein, antes de qualquer preconceito em relação aos quadrinhos, identifiquei um preconceito em relação ao gosto popular. Uma primeira observação: a fala dele dá a entender que um dos maiores usos do vale-cultura seria para compra de revistas com mulheres peladas. Mas então as mulheres não teriam acesso ao vale-cultura? Outra observação: baseado em que se pode dizer que, se a população tivesse acesso ao vale-cultura, investiria primordialmente nesse tipo de publicação? Não vejo motivos concretos para isso. Não haverão famílias interessadas em ir no teatro, quem sabe pela primeira vez? Ou casais indo ao cinema? Ou amigos presenteando livros de algum tema que interesse ao outro? A ideia de que uma população pobre investiria primordialmente em gibis e revista de mulher pelada (ainda que não me soe um investimento ruim) é, no meu ver, preconceituosa e machista.
4) agora um pensamento voltado especificamente para essa opinião de Dimenstein sobre revistas de mulher pelada: sei que não são todas, mas muitas dessas publicações vem também com texto. E textos bons. E quadrinhos bons. Você pode dizer: o leitor comum só vai querer ver as fotos! E, no caso de alguns leitores, eu posso concordar com você. Só que não vou ver mal nenhum nisso. Os textos e as fotos, aliás, vão estar no mesmo lugar, disponíveis a outros leitores, e isso pode abrir portas para outros tipos de conhecimentos. De quem quiser ir atrás deles, claro.
5) para finalizar, a proposta do vale-cultura me parece um meio real de democratizar o acesso à cultura, principalmente por fazer com que a própria população de baixa renda perceba a importância da cultura em suas vidas, na medida em que vai ter um recurso especialmente voltado para isso. Querer regular ao que o vale dará acesso é ir contra o espírito do próprio vale-cultura. Salvo exceções de cunho meramente mercenário, claro, pois certamente haverá empresas que usarão o vale com intenções auto-beneficentes. Mas aí já seria outra discussão..
Quem quiser acrescentar ideias, opinar, discordar etc fique à vontade! Minha visão de mundo não é erudita o suficiente para impedir à sua!
Um comentário:
Além do 'gosto' popular, o problema parece estar mesmo no meio de 'exibição' da arte. Ele não questionou a publicação 'livro' ou seu conteúdo, questionou tipos de revistas (nu e gibis). Agora vai nosso questionamento para ele. O que é cultura? quais são os produtos culturais que podem ser trocdos pelo vale? cinema, livro, CD, DVD, espetáculos de dança, teatro? shows? quais?
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