segunda-feira, janeiro 08, 2007

O drama da monografia (sobre quadrinhos)

Em épocas de monografia, fica difícil postar no blog com certa regularidade e certa qualidade. Daí eu aproveito para publicar textos de outras pessoas. No fim, você até sai ganhando.

Hoje, então, quem me salva é minha amiga-jornalista pernambucana Mirella Falcão. Há mais de três meses, a Mirella me mandou a reportagem abaixo, que ela fez pro caderno Viver do jornal Diário de Pernambuco, em 30 de setembro do ano passado. Eu a havia engavetado (a reportagem, não a Mirella). O assunto é interessantíssimo (a adaptação de temas e formatos dos quadrinhos para o teatro) e o texto muito bem escrito. Confira!

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Emoções cênicas quadro a quadro
Encenadores levam aos palcos estética gráfica das HQs interessados na agilidade e fragmentação dessa linguagem
por MIRELLA FALCÃO, especial para o Diário

A paixão de Jean Genet pelo teatro oriental, cuja característica principal é o expressionismo de sua dramática, a relação de gueixa d'As criadas e a violência que emana dessa subserviência, no desejo de matar a patroa, motivaram a ousada proposta da Cênicas Cia de Repertório de transpor o clássico do dramaturgo francês para o universo dos mangás e dos cartoons japoneses. Tanto que foi a vencedora do prêmio de montagem para esse texto promovido pela Fundarpe, com estréia no Teatro Arraial dia 13 de outubro. A estética dá continuidade a pesquisa iniciada com Neuroses, também inspirado nos quadrinhos. Contudo, o formato chama atenção pela recorrência desse ambiente gráfico das histórias em quadrinhos e animações na produção de teatro nacional.

No Brasil, uma das primeiras iniciativas do gênero partiu da gaúcha radicada em São Paulo, Beth Lopes. Em 1990, a originalidade da montagem de O cobrador, de autoria de Rubem Fonseca, apoiava-se nas técnicas de mímica, dos improvisos, resultando em um espetáculo ágil, cheio de recortes de luz, que dava a impressão de enquadrar ações em instantes flagrados por partes.

Naquele mesmo ano aconteceu ainda a montagem nº 1 de um texto de Will Eisner no Brasil, por Edson Bueno, diretor do curitibano Grupo Delírio. New York por Will Eisner trazia o famoso personagem Spirit, um herói sem poderes, que passa a combater o crime com uma máscara depois que é dado como morto pela sociedade. O impacto da montagem foi tal que deu origem ao Festival de Teatro de Curitiba. Talvez isso explique recentes produções do gênero vindas de grupos do Paraná, como a Vigor Mortis, a Sutil e a Armazém (com sede no Rio).

Bueno, que continua até hoje à frente da Delírio "encenando em quadrinhos", considera que a busca por estudar a transposição dessa linguagem para o teatro é algo próprio de sua geração. "Todos cresceram lendo gibis e vendo desenhos animados na TV", conta. Esse fascínio pelos quadrinhos ou por determinados autores tem impulsionado a adaptação dessas narrativas para os palcos. Principalmente as de Eisner, considerado o mestre das graphic novels.

"Eisner põe a cidade como protagonista, valoriza um anônimo na multidão, carregando de emoções um único quadrinho", diz Paulo de Moraes, diretor da peça Pessoas invisíveis, da Cia. Armazém, que esteve no Recife no último festival de teatro. É também o caso da Sutil Companhia, prêmio Shell de iluminação deste ano. "Sempre li Eisner e pensava na solidão coletiva de uma grande cidade. Foco em detalhes de histórias perdidas numa imensidão vertical", conta o encenador Felipe Hirsh. Em ambas, o edifício é um cenário-personagem.

Para outros grupos o formato interessa muito mais que a temática. "A agilidade e a linguagem entrecortada dos HQs e dos cartoons estão próximas do entendimento de mundo de hoje. São produtos da pós-modernidade, com estrutura cheias de citações, irreverentes, que se valem muito das paródias", diz Jorge Alencar, da baiana Dimenti - veio ao Recife em 2004, com Chá de Cogumelo. Assim, em vez de encenar uma história em quadrinhos, conta-se a história como se fossem quadrinhos. Entre os que desenvolvem uma dramaturgia própria em cima desses elementos, estão a Dimenti, a Vigor Mortis (PR), a Bagaceira (CE) e a recifense Cênicas de Repertório. "É uma forma de desenhar as cenas", explica Yuri Yamamoto, diretor da Bagaceira, que apresentou Lesados e O engodo no Recife, em 2005.

Muito além do plano geral
O aproveitamento cênico dessa estética surpreende pela inventividade e pela diversidade de propostas. Até pelas várias vertentes do mundo gráfico. Alguns tendem ao realismo (Eisner), outros são mais caricaturais. Com o cruzamento das HQs com os cartoons, as possibilidades se alargam ainda mais. O desafio, contudo, é colocar a imagem em primeiro plano, em uma arte essencialmente da palavra e limitada ao plano geral. E ainda "quadrinizar" todos os elementos da criação teatral, como luz, cenário, maquiagem, figurino, som e, em especial, a interpretação.

Em Pessoas Invisíveis, da Armazém, existe uma trilha em BG que nunca pára. "Nos desenhos de Eisner o ruído é uma coisa muito importante, por isso há sempre um barulho, que pode ser um martelo batendo, uma música, o sopro do vento", explica Paulo de Moraes. Outra saída é uma certa perseguição do som aos personagens, em referência às constantes sonoplastias dos cartoons.

O ambiente de terror das comédias da Vigor Mortis pede sempre uma iluminação mais sombria. O tratamento em preto e branco das cenas é um recurso bastante utilizado. Emoldurar os atores também. Na montagem de As criadas, a iluminação será explorada para criar closes. "A omissão de ações é algo muito característico das HQs, que ficam subtendidas pelos detalhes. Focamos também a luz no rosto de um e depois no do outro ator, para mostrar a reação", detalha o diretor Kleber Lourenço. O figurino das criadas feito por Marcondes Lima faz uma mistura das gueixas com as colegiais dos mangás, para passar uma violenta sensualidade. Mas há abordagens bem divertidas dos figurinos, como em Chá de cogumelo, uma releitura dos contos de fadas, em que a Chapeuzinho Vermelho usa pé-de-pato, para ficar bem caricata.

A atuação é um laboratório à parte, pois exige muito mais do elenco. Alguns tentam até sistematizá-la como a Cênicas, a Bagaceira, a Delírio, a Dimenti e a Vigor Mortis. Em geral, experimenta-se uma hiper-interpretação, caricatural até, com movimentos geométricos. O ritmo do corpo e da voz variam muito: ora rápidos, ora interrompidos, ora lentos. "A interpretação está fora do ator, diferente da clássica interiorização do personagem. Às vezes, numa limitação do corpo, por causa do figurino, na voz", observa Jorge Alencar, da Dimenti. "Deixa de ser um texto de falas. Geralmente, bem curtinhas como nos balões. Isso para dar destaque a expressão facial, que o público tem que ver", diz Edson Bueno. "Verbo, verbo, verbo. Imagem!", resume Paulo Biscaia da Vigor. Já em As criadas, "vamos trabalhar em cima de algo bem comum nos mangás e nos cartoons japoneses. Os personagens falam sem se olharem, com os corpos direcionados para lados completamente diferentes", adianta Lourenço.

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