Nos próximos dias publico aqui a segunda parte do texto, falando especificamente sobre Fontanarrosa.
Bem, deleite-se!
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Como conheci Inodoro Pereyra
por Ben-Hur Demeneck
Era um pacote fechado de um sebo. Encontrado em uma loja de livros, em Itajaí, SC. Parecia uma miragem em um posto da gasolina. Depois de desatado o laço que envolvia quatro volumes de "Ediciones del Flor", topei com desenhos de Inodoro Pereyra, el renagaú. Nome completo e alcunha do personagem de Fontanarrosa. Em poucas semanas se aboletou na minha memória e não saiu mais. Ficou amigo de muito tempo.
Ignorava o personagem até então. Me senti assistindo a uma luta extraordinária de homens musculosos vestindo luvas estofadas e bermudas de nylon. E descubro o nome do mais carismático deles. Fico então doido de curiosidade para saber quem seria esse tal Mohammed Ali. Foi essa a sensação de trombar com o enorme culto ao nome Fontanarrosa. Palavra um tanto inconveniente para qualificar um humorista nato, que viveu de desancar a solenidade de tudo com sua inteligência. Natural de Rosário, Argentina, esse cartunista completaria 64 anos neste 2008 se estivesse vivo (informações complementares no sobre o autor no post em outro post, ainda a ser publicado). Faleceu em julho passado deixando uma obra imperdível.
O gaúcho que não atravessou a fronteira
O personagem Inodoro não circula em português, está inédito no Brasil. Ficou pelo seu rancho no interior argentino, mateando. Já o seu criador, veio ao público brasileiro com "Boogie, o Seboso" ("Boogie, El Aceitoso"), que na imagem acima está à esquerda da tela. Um personagem que explora a banalização da violência. A editora L&PM esclareceu via e-mail para o blog cabruuum [gentileza do Ben-Hur: pois o esclarecimento foi para ele mesmo, que no texto citou este humilde blog por profissionalismo] que “não há previsão de reedição deste livro ou de outros livros do autor”. Está esgotado e assim permanece o ISBN 85.254.0199-4. Inodoro, então, nem sinal.
Ao contrário de Boogie, Inodoro Pereira é um homem rural. Fala, se veste, age e reage como narra com o folclore dos personagens do interior. Conversando com quem quer que seja. Nada teme e nada o desconcerta. E, mesmo com tantas palavras na ponta da língua, tem vezes que nos premia com uma filosofia. E, verdade seja dita: Pereyra é sobretudo um falante. Mora em um rancho, numa Argentina distante de sua Buenos Aires.
Entre uma tira ou outra, descobrimos que sabe domar cavalos, usar boleadeiras, que conhece os passos da dança chacarera. E vemos cuias, alpargatas, itens e personagens de sua vida campeira. Inodoro tem um nariz grande, um cabelo volumoso. E a largura das calças contrastam com o do seu peito, anda que anda folgado. Ao ficar fora de si, os dentes se mostram nitidamente, quadrados, a descoberto dos lábios. Voam perdigotos. Mesmo assim, consegue manter diálogo com os tipos mais estranhos.
É uma delícia ler o modo que Inodoro fala. Frases tomadas de regionalismo. No começo, eu tive dificuldades em me adaptar com a sua prosa. Avançando pelas 120 páginas do sua coletânea, ganhei experiência para sacar do que se tratava. Perceber que “güen” é “bueno” que “ubicaú” é “ubicado”, “nomaj” em vez de “no más”. Ou um “tata Dios” para manifestar sua crença e “Güenosaires” para citar uma referência administrativa. Um pouco arriscado demais para meu portunhol.
O modi di falá desse gaúcho argentino se explora explorado em companhias inusitadas. Fala com assombração, papai noel, cachorro, papagaio e até Antonio das Mortes – o personagem de Glauber Rocha. E personagens não menos verossímeis – índios, homens da lei, padres, sapateiros, payadores, palhaços e gringos.
As conversas entre Inodoro e os índios me fizeram pensar em Papa-Capim. Ou melhor, na representação dos índios em nossos quadrinhos. E foi um barato ver conversas divertidas entre esses habitantes dos pampas, porque ali aquele sempre se surpreende com as idéias e interesses dos nativos. Há um evidente choque cultural entre eles. Numa feita, a grande vontade era ir derrubar o governo em Buenos Aires, retomar a posse das terras por completo.
Desfila um personagem novo a cada enredo. Há um quê de Monteiro Lobato em Fontanarrosa. Pois tudo acontece com esse estancieiro, convivendo juntos o real e o fantástico. Inodoro difere muito de Pedrinho [personagem de Monteiro Lobato. Veja link anterior] em termos de aventura. Está longe de ser moleque, de sair correndo e aprontando. Esforço físico é só mostrar sua superioridade em um desafio qualquer. O mundo que venha até o rancho. Todos os mundos.
[FONTANARROSA. Inodoro Pereyra: número 15. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1991 (1. ed.), 1996 (4.ed.). ISBN: 950-515-671-5]
Os livros do sebo
A primeira coletânea de Inodoro que eu tomei contato era a de número 15, intermediária entre os outros volumes de número 1 e 21, integrantes do pacote. O quarto elemento era um “Clásicos según Fontanarrosa”. Confesso que este último foi o responsável pela minha aquisição. Como um humorista colocaria Moby Dick em quadrinhos era charada boa de ver resolvida. E Inodoro veio de galope da baleia, Otelo e Homero.
- Como vai Inodoro?
- Mal, mas acostumado.
Impulsivo e temperamental. Se conversa com um biólogo gabaritado como Darwin e não conhece as palavras, ouve alguma de seu cotidiano que tenha o som mais parecido. Logo, um “gliptodonte” vira uma questão “si senti um grito dónde?”. E a conversa se emenda. Ou quase. Durante as primeiras leituras eu fiz uma associação com o Radicci, do Iotti. Talvez por uns modos grosseiros, pelo jeito de falar típico e até por um jeito de se vestir com as roupas de sempre. Ou por viverem em casas sem luxo e terem esposas que uma hora ou outra não agüentam seus disparates e lhes atiram algo em cima. Avançando as páginas, ficando mais familiar de Pereyra (olha a intimidade!), a imagem foi se desfazendo. Fontanarrosa nos conquista com uma força de raro poder. Quatro páginas com quatro tiras cada uma são suficientes para destilar um suco de psicologia, filosofia, história e malandragem. Original demais para minha capacidade de associação.
Para um homem do campo, falar com animais não é nenhum mistério. Não bastasse ter como maior interlocutor o seu cão, Mendieta, fala com o que estiver ao alcance. Bom para nós que achamos o absurdo elemento básico de sobrevivência. Aliás, um novilho fica muito mais simpático falando. E tem seus motivos para discutir e chorar. O animal recusa tomar sua vacina, prefere contrair aftosa pois assim não serve para o frigorífico. E bye, bye, exportação de carnes para o Mercado Comum Europeu.
A evolução do traço
Há uma diferença muito grande entre o primeiro Inodoro e aquele mais recente. O traço era mais forte, pesado, com mais áreas negras. Depois, em vez de preenchimentos, Inodoro passa a virar contorno. E para quem atravessa como estrangeiro o território de Inodoro pode pensar que são no máximo primos de segundo grau. O tamanho dos exemplares, as cores e tipos do título nos socorrem e deixam explícito: trata-se do mesmo homem. E do mesmo cão.
Mendieta, o parceiro fiel do protagonista desde os anos 1970. Se não falarmos desse “can hispanohablante”, ele mesmo se apresenta. E como sobra pouco tempo para a cortina se fechar e terminar este ato, tomemos a palavra e a cena de “Encuentro con el Gran Zigfield”. Mendieta deixa clara sua posição: não vai se se juntar ao circo. Quer terminar antes o curso de Medicina. Abandonados pelo pretendente, o dono chamou o mascote à verdade. E teve sua resposta:
- En verdá, don Inodoro, sucede que me yamó el Mario Vargas Llosa pa hacer en teatro "La ciudá y los perros".
(muda de quadro, close em Inodoro)
- Y usté hace de perro, Mendieta
(muda de quadro, plano aberto)
- Y... pa hacé de ciudá no me da el cuero don Inodoro.
PARA SABER MAIS: Sítio oficial de Fontanarrosa
4 comentários:
...grande Ben-hur, achei demais o personagem, que traço, que alma tem!! só você mesmo para achar uma raridade dessas!! um grande abraço aqui da santa paula e do seu amigo rabiscador!!
Já vou vaticinando: só mesmo o Ben Hur para fazer estas verdadeiras descobertas arqueológicas. Parabéns ao blog por este crossover.
Tche, parabéns aos dois pelo post!
Muito legal conhecer o Inodoro. Gosto de monte desse tipo de humor que não tem vergonha de ironizar a si mesmo, sua condição, suas manias. Ganha o meu respeito quem usa isso com maestria, como parece ser o caso do Fontanarrosa e de outros tantos argentinos que conheço, principalmente na literatura.
Fiquei curioso para conhecer mais a figura, de verdade.
Abraços,
Leonardo
Grande Ben-Hur! Muito bacana essa coisa de compreender as sacadas do outro idioma. Não é pra qualquer um. É mesmo para pessoas como o colega, que pára diante do texto e percebe esses detalhes fascinantes.
Esse mundo é muito rico... Inodoro é exemplo disso, e o Ben-Hur é um dos que sabem garimpar.
E parabéns ao blog, outro achado, com certeza.
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