domingo, fevereiro 04, 2007

(auto)crítica

"Olá Augusto. Me chamo Ricardo Fonseca e escrevo de Porto Alegre. Sou desenhista de histórias em quadrinhos e estou lançando uma revista independente chamada Recontos, é um projeto de adaptações de contos para quadrinhos, transpondo em cada exemplar um escritor diferente, o primeiro autor escolhido é Daniel Galera.

Gostaria de saber se podemos enviar pelo correio um exemplar da nossa revista para que opinasse e se possível divulgasse o nosso trabalho. Temos mais informações no nosso blog, www.luzesombrahq.blogspot.com.

Obrigado pela atenção. Ricardo"

Pois bem, Ricardo. Agradeço pelo exemplar que me enviou. Li com atenção e agora vou deixar alguns comentários, esperando não fazer aquela espécie de crítica maniqueísta que ou louva ou destrói abruptamente o trabalho do artista. Mas, bueno, vou ser obrigado a apontar o que observo.

(Relativize aí o fato de eu ser mais novo pelo menos 7 anos que você, e não saber desenhar. Mesmo assim, acredito que algumas idéias podem ser úteis).

A primeira edição da Recontos adapta os textos "Natureza morta", "Subconsciente", "Tiroteio" e "Todas as rosas do balde" do livro "Dentes Guardados", disponível online no blog do Daniel Galera. Adaptar Galera já é, por si só, um ato ousado e dúbio. Pois se há uma identificação dos quadrinistas com a alta qualidade narrativa e de conteúdo do autor (embora "Dentes" não tenha ainda a maturidade de "Mãos de Cavalo", uma obra que, no meu ver, marca uma geração), essa mesma qualidade também implica uma responsabilidade gigante: fazer a adaptação mantendo o mesmo nível. E isso logo na primeira edição da revista (mesmo se tratando de um projeto com mais de três anos, não deixa de ser uma primeira edição, com todas as inseguranças implicadas nesse pioneirismo).

Daí que, seguindo esse raciocínio, a crítica de "Recontos" deve ser feita a partir do que ela quer ser. Eis o que os autores prometem na introdução: "Para essa primeira publicação, nosso objetivo era de produzir um material de qualidade elevada, tanto artística quanto 'editorialmente' falando". Quando li isso, lembrei de uma professora da disciplina de Fundamentos de Publicidade e Propaganda (faço Jornalismo, mas essa era uma cadeira básica da Comunicação Social da UFSM) dizendo que é melhor pedir um prazo maior para entregar um produto a um cliente. Pois, se entregar antes, você vai demonstrar eficiência. E, se por acaso der algum problema, você tem tempo a mais pra refazer. Ou seja, você surpreenderá porque não prometeu muito.

Então, o meu conselho vai justamente nesse sentido: se "Recontos" prometesse menos, ela surpreenderia. Mas, ao contrário, ela constrói sua imagem como sendo um trabalho que busca alta qualidade. Infelizmente, porém, há alguns erros de português já nessa introdução, e o exemplar que me chegou em mãos tem falhas de impressão, já descumprindo a promessa.

Isso não é uma crítica à qualidade, veja bem. É antes, uma orientação sobre prometer e cumprir, ou não prometer e cumprir, ou prometer e não cumprir. Além do mais, acredito que falte à equipe da "Recontos" uma maior consciência gráfica, ou seja, consciência de fazer um trabalho sabendo (ou prevendo) o resultado final. Isso se torna possível se há um conhecimento de informática e de funcionamento de gráficas.

A introdução fala também que "esperamos que nossa singela publicação em preto e branco seja mais simpática que o colorido psicodélico nas bancas de revista". Bem, acredito que falte um domínio de recursos narrativos, também. Indico a leitura de pelo menos quatro livros clássicos dos quadrinhos (abaixo). Scott McCloud, por exemplo, fala sobre o uso de preto e branco como uma estratégia narrativa de favorecer a disseminação das idéias do texto. Obviamente, há a questão financeira, também, já que publicar em cores é mais caro. Mas, então, que se pense a publicação como sendo preto e branco e se trabalhe o enredo por esse ponto de vista, de favorecer as idéias do texto.



[Os dois livros de cima: "Desvendando os Quadrinhos" e "Reinventando os Quadrinhos", de Scott McCloud. Os dois de baixo: "Quadrinhos e Arte Seqüencial" e "Narrativas Gráficas", de Will Eisner]


Por outro lado, é admirável a vontade de "Recontos" de ousar em ângulos, planos e formato dos quadros. Os desenhos (considerem minha parca capacidade nessa área) me parecem bem feitos. Porém, senti uma falta de dominío dos recursos narrativos, ou seja: a opção por esse ou aquele ângulo por ser o adequado para a narrativa, e não por ter um resultado mais agradável, por exemplo. Mais uma vez, é uma questão de experiência e domínio da narrativa. Com o tempo, os autores de "Recontos" provavelmente terão mais cabedal para poder optar por este ou aquele plano, tonalidade, ângulo, formato dos desenhos etc. Hoje o que é admirável é a ousadia do trabalho. E, convenhamos, quadrinizar contos do Galera não é nem de longe uma tarefa fácil, muito pelo contrário...

Outra coisa: em tudo isso, há algo de tão singelo, tão interessante, que acho que deveria ser a verdadeira proposta da "Recontos": trata-se da visão de leitores do Galera sobre a obra dele. Uma visão em quadrinhos, e acho que aí a revista encontra seu lugar: pessoas que lêem e gostam do trabalho do Galera e resolvem mostrar como o enxergam em quadrinhos, segundo suas atuais capacidades. Se prometessem isso na introdução, aí sim estariam coerentes com o resultado.

Antes de terminar, preciso marcar algumas idéias. Primeiro, ressaltando: essa é a minha visão da primeira edição da "Recontos", uma visão totalmente questionável, discutível e educadamente refutável. Espero inclusive que este blog sirva pra isso, pra brotarem outras idéias. E, segundo, que essas idéias contribuam com os autores da "Recontos", artistas jovens (embora mais velhos que eu) que ainda têm bastante pra amadurecer em seu trabalho, se aproveitarem as oportunidades pra isso. E observar (filtrando) uma crítica não muito positiva é uma das maneiras.

Aliás, tentei aqui fazer uma crítica propostiva, indicando saídas, que é o jeito que funciono. Ainda assim, fica bem claro que, fazendo isso, também me coloco em posição de criticável. Inclusive por essa ser, sei lá, a segunda ou terceira crítica aqui do blog (lembro de uma ou outra). De modo que, se alguém se dispor a lançar um olhar analítico sobre o blog, eu adoraria a oportunidade de crescer...

Um comentário:

Leonardo disse...

Eu fiquei curioso demais pra ler a revista. E isso veio, em grande parte, para meio que querer contrapor a tua crítica - tu sabe que eu adoro ser do contra em debates, às vezes até exagerando em procurar detalhes em excelentes argumentos.
Mas, enfim, eu fiquei curioso para ler a revista. Me parece que a tua crítica tá "quero pegar pesado pq nao correspondeu a expectativa criada pelos próprios autores, porém não vale a pena pegar demais porque só a iniciativa do trabalho já vale muito. E além do mais, eles me mandaram para criticar, é legal essa atitude".
Hehehehe
abraço!